quinta-feira, janeiro 31, 2008

AUTO-AJUDA – 04/04/2007

"A diferença básica entre obstáculo e dificuldade é que aquele é intransponível e esta é transitória" => frase impressa na capa de um livro de auto-ajuda.

A necessidade de justificar a inércia e a incapacidade é um fenômeno humano contemporâneo. Antes da Revolução Industrial, da expansão do ensino público e da universalização do voto, não existia tanta gente tão frustrada consigo mesma. Estamos na era dos gurus, falcatruas vivas, estelionatos de carne e osso, que dão um toque de magia e espiritualidade pagã ao capitalismo. Empresas são mais do que pessoas jurídicas, tornam-se conclaves de magos. Na corrida da carreira, aparece a pista paralela da iluminação. Nirvana financeiro.
Mas a felicidade não é uma catatonia. Não existe processo de criação de alegria, somente intuições mais ou menos bem elaboradas de como encontrar contrapesos para a tristeza cotidiana. A tristeza é inevitável, a felicidade não. Viver é sofrer e duvidar. Inclusive duvidar que o dinheiro vai chegar pras contas. Às vezes, o inferno é periódico. Mensal.

SPRINT. PAUSA. SPRINT. PAUSA. SPRINT. PAUSA. SPRINT. PAUSA. – 27/03/2007

É estranho, por ser ao mesmo tempo desesperador e alienante. Ter a perspectiva de ganhar dinheiro num futuro próximo mas não especificamente localizado é pior do que não ter perspectiva alguma. É como se o tiro de inicio da corrida tivesse sido disparado há poucos segundos e não me disseram se são 100 metros rasos ou maratona.
Essa perspectiva fica ainda mais bizarra e surreal e brumosa quando se tenta manter os hábitos sociais que envolvem ter grana. A saber, as atividades supérfluas que nos mantém em contato com nossos semelhantes (quem?). Existir socialmente é ter dinheiro!
Em retrospectiva, sob esse prisma, relacionamentos ocorridos em épocas de penúria da minha vida eram, no que concerne à estrutura, quase somente sexo recreativo. Tinham, sim, sentimento (nem sempre tão intenso ou profundo quanto se espera ou se admite....), mas ao descrever a rotina que se desenvolveu naturalmente, me vem a frase “Pô, a gente não saía daquela cama”.

FAZ TEMPO QUE NÃO PENSO EM POLÍTICA, ENTÃO.... – 15/01/2008

Ao chegar no centro do alto vale, disse o viajante de ferro: pedi e recebereis. Vitimas da fome, este é o vosso aguardado libelo! Aqueles que dizem, que pensam, que falam, e que tudo têm, esses serão vocês também! E ficou claro para os que tudo têm, o que dizia o novo Rei. Ao viajante de ferro responderam: pagai e receberei. Ele, que se opusera porque se opusera, sempre sabendo o porquê e sempre encarando a fera, optou. E seguiu os velhos hábitos e também capitulou.

Contava a antiga rima do lobo que se vestiu de cordeiro para predar insuspeito e do cordeiro que se vestiu de lobo para dentre predadores sair inteiro. O viajante essa rima esqueceu, e seu final dizia que assim se deu: o lobo foi morto por engano por um dos seus e o cordeiro viciou-se no sangue dos irmãos após o primeiro que comeu. E assim foi com o viajante e alguns remadores de seu barco a vela. Quem esquece aquilo que foi não lembra mais daquilo que não era.

domingo, fevereiro 25, 2007

RAZÃO DE SER DESTE BLOG (Parte II) – escrito em 20/02/2007, publicado em 14/01/2008

Domingo. Estou deitada numa rede, estirada entre duas palmeiras. As confusões do mundo não chegam aqui, onde há rosas e grama verde e música suave saindo das janelas da casa. Tenho um copo de bebida gelada – uma mistura do suco das frutas do jardim. É uma fuga da realidade por algumas horas. Nada de telefones nem pessoas. Paz. - Liv Ullmann, em sua biografia “Mutações”, adaptei levemente.

A primeira sensação que tive ao ler isso foi que a fuga que ela descreve é um oásis de solidão feliz em meio à melancolia de estar cercada de gente que quer algo dela. Em seguida, me veio a satisfação de perceber que não há trabalho na cena, não trabalho como produção de bens ou serviços, mas como atividade remunerada, venda da capacidade física e/ou intelectual. A imagem de uma mulher jovem, descansando, ouvindo música (uma criança tocando piano?) e bebendo suco das árvores frutíferas que ela plantou me passou a idéia de ausência de emprego, não por desconsideração, mas por ser algo supérfluo, visto que ela encontra (auto)realização no que a cerca.
A princípio, não há capitalismo em nada do que acontece ali. Mas a palavrinha de abertura, sutil, me puxa de volta à realidade, assim como também a ex-Sra. Bergman. Domingo. Adultos que têm um emprego e crianças que vão à escola, a partir da idade em que essa deixa de ser descoberta e se torna rotina, sabem reconhecê-lo em sua plenitude.
Pra quem não trabalha, os dias são iguais. E é justamente quem não trabalha que mais desesperadamente busca essa coisa chamada diversão, ou entretenimento, ou lazer. Buscam do jeito errado. Se entretém na ânsia de encontrar felicidade. Geralmente são jovens (que seja, adolescentes. Odeio esse termo!) que nasceram há pouco tempo ou há várias décadas e falam como “animadores” de rádio FM, inseguros que são, sempre tentando te convencer da própria alegria ou te ensurdecer – geralmente as duas coisas. E erram porque procuram felicidade no lugar errado e do jeito errado. Felicidade não está num local, ou hábito, pois não preenche espaço, não é como algodão em bolinhas. Não pode ser encontrada, apenas criada.

TRÊS DE FEVEREIRO – escrito em 04/02/2007, publicado em 14/01/2008

A aceitação da dor é diferente pra ateus e crentes. Quando minha tia, irmã mais velha do pai, alçada (por mim, pelo menos) à condição de matriarca espiritual depois da morte de minha vó, disse que rezou uma Ave-Maria pra ele ontem, data do seu aniversário, eu disse com toda a sinceridade: “Que bom!”. Não, eu não quis dizer “que bom que falar sozinha te consola” porque isso eu também faço, só que na maioria das vezes não recito um texto decorado e não uso a voz, só o pensamento.
O que eu quis dizer foi “que bom que encontras nisso um apoio pra tua própria força, assim como eu encontro em outros lugares.”
Se meu pai estivesse vivo, teria completado 65 anos. É muito estranho. Quando alguém morre e tu não estavas lá na hora, passa-se o velório inteiro com vontade de sacudir o cadáver: “- Acorda, perdeu a graça, vambora!”. Afinal, eu não estava lá. Não vi. Portanto, não aconteceu. Em escala microscópica de importância, esse mesmo raciocínio se aplica a questões como “pra onde vai o interior da geladeira quando eu fecho a porta?”.

0800 SALVAÇÃO – escrito em 14/10/2006, publicado em 14/01/2008

A humanidade é muito engraçada, principalmente quando não tenta fazer graça. Trabalhando em telemarketing, ouvi de um sexagenário de Curitiba a seguinte frase: “Eu quero virar um cliente da tua empresa e mandar a SKY pro inferno”.

EU CONFESSO – escrito em 28/09/2006, publicado em 14/01/2008

Sou influenciado demais pelos Estado Unidos. O Tio Sam é a Roma da minha geração (e qual é a minha geração? É a dos mais jovens seres humanos que lembram da vida sem Internet). Com a rede mundial, todo mundo pode ter seu Hakim Bey de estimação e por conseqüência, seu próprio universo de heróis e vilões. Provavelmente personagens de Anime. Desculpem, crianças, eu sou do tempo em que as maravilhas do mundo estavam no Atlas Escolar. Para meus avós, quem fazia o papel de Roma era a França. Para meus pais, era o Milagre Brasileiro. Para meus filhos, provavelmente Roma será a cidade onde ocorrem os crimes do GTA San Andreas.
Eu penso em um mártir e me vem Martin Luther King. Eu penso em um mago supremo e me vem George Lucas (como sabemos, o cinema é a magia da pós-modernidade). Eu penso em um pária e me vem Henry David Thoreau. Eu penso em um oráculo e me vem Mark Twain. Que exemplos brasileiros eu poderia dar? Tiradentes, Getúlio Vargas, Carlos Lamarca, Barão de Itararé?
O problema de comunicação que atrapalha o meu relacionamento com o Brasil está no fato de que eu gosto (demais, reconheço) daquilo que os americanos chamam de “entertainer”, enquanto que o show business nacional é interpretado pela Política. Não tem pão, então capricha no circo!
E a Política (sim, o P tem que ser maiúsculo, e se tu precisas perguntar porquê, não és um cidadão) nos EUA começou como uma idéia genial. Vide a constituição deles. Todos os homens são criados iguais e têm direitos inalienáveis como a liberdade e a busca da felicidade. Depois deu no que deu porque os criadores da idéia eram latifundiários gordos e o pessoal que os sucedeu no trabalho de construir a nação baseada nessa filosofia deixou de perceber a diferença entre Estado e Empresa. Que grande tragédia! Como eu queria que “pobreza” fosse o nome de um antibiótico eficaz contra o vírus do orgulho!
O conceito de entertainer é uma merda. O Faustão é um entertainer: não sabe fazer nada, não canta ou dança ou interpreta, ele é somente um mestre-de-cerimônias. A “função” desempenhada pelo Faustão e similares é razão suficiente pra que eu considere a televisão uma invenção supérflua. Assim como o forno de microondas fornece comida instantânea, a TV é um eletrodoméstico que fornece filmes, desenhos animados e futebol. De resto, tudo que a programação dela se propõe a fazer, o teatro e a literatura fazem melhor.
A única contrapartida aceitável ao entretenimento é ter algo a dizer. O melhor tipo de fascista é aquele que sempre sabe o que está fazendo: a espontaneidade é uma ferramenta de marketing e não uma qualidade pessoal. Melodias, letras, opiniões, certezas, tudo é interessante e consumível, e não poderia ser uma sem ser a outra. Escreve porque tem o que dizer, mas também escreve com a “intuição calculada” de ser interessante, porque, no final das contas, há dois objetivos ao escrever: aprender a escrever e me tornar interessante (sem nunca saber qual dos dois se está priorizando). Todo pedacinho de produção artística pode ser, assim, mais uma Polaroid da peculiaridade do seu autor, que diz: “Leiam-me, ouçam-me, cantem junto, invejem-me! Porque eu sou estranho e ‘diferente’, quase um psicopata, quase um suicida, furioso com a humanidade porque quase sempre falham os meus esforços para ser menos parecido com ela!”.

EU CHOREI DE RAIVA DO LULA DEPOIS DO DEBATE – 22/09/2006

Faça soar um alarme e estaremos lá. É preciso defender a causa da democracia, e os dossiês estão aí para ser plantados e gerar belos frutos de cores quentes e convidativas, enquanto seus interiores estão cheios de suco gástrico esverdeado, um tom de verde entre a inveja e a decadência, uma cor que nasce dos tumores intestinais de mães condenadas.
Tudo isso é transformado em boletins diários e irradiado diretamente nos cérebros da população sentada em casa se empanturrando de achocolatado em pó. Câncer espiritual se espalhando através de cartuchos de informação bombardeados por telas com mira eletrônica. Nós voltamos amanhã, boa noite!

SEX IS A JOKE IN HEAVEN – 22/09/2006

By the age of 30 I had still a doubt or two about sex. I could tell a lot of stories about it, but they were all about me, so I had the feeling people wouldn´t be interested. Despite the significant amount of information I got from pictures, I considered the actual experience in comparison quite overrated. This was a shallow perspective, anyway. Sex is a laughing stock for mankind because it isn´t completely under our control. Or maybe I´m talking about love.

REGURGITANDO A AMARGURA ACUMULADA – 02/09/2006

Regurgitar significa expelir o que há em excesso numa cavidade (geralmente é o estômago). Eu odeio vomitar. E sinto ânsia de vômito cada vez que vejo resto de Nescau no fundo do copo. Regurgitar vem do latim gurgite, que significa abismo. Sair do abismo ou cair no abismo? Sair é nascer e cair é criar asas? Sair é perder algo importante e cair é esquecer de onde estava vindo?
Corações também regurgitam. Podem regurgitar sangue, quando são atravessados por uma bala. Pode ser arte, quando são pouquíssimo adaptados a esta vida (tem dias em que eu me sinto, como diz Clark Kent, um “estranho visitante de outro planeta”). Pode ser dor, quando acabaram de sofrer um tombo feio e o certo, cotidiano, corriqueiro, perene se tornou memórias.
Os relacionamentos estão para o amor assim como a burocracia está para a liberdade. É uma ordenação cartesiana de um instinto primal. A filósofa Jennifer Lopez coloca assim: “A salsa é a expressão vertical de um desejo horizontal”. Hein?
Toda elocubração sobre o tema se torna apenas exibicionismo intelectualóide quando eu me encontro diante de um coração capaz de enxergar os próprios hematomas. E fazer das muletas uma alavanca. Parece que sempre tem alguém entre minhas pessoas amadas que está assim, e na hora é lindo de ver. Inspirador até, ou inspira dor?
Só pra esclarecer: estávamos em um bar da moda, junto à pista de dança, conversando sobre algo fútil, quando entra o assunto relacionamento-recentemente-mal-acabado e ela chora. De soluçar no meu ombro. E põe no ar a frase da noite: “Ah, quanto tempo eu passei afastada de mim mesma!”.
HÁ UM SENTIDO ESPECIAL na esperteza dela: é antes um instinto do que um talento. É inato, pertence às áreas escuras da floresta de sua mente. Como nas histórias de Homero, sua travessia não é apenas um desafio, mas a própria recompensa. A oportunidade substituindo o resultado. A jornada importando mais que o destino.
DE TUDO AO TEU AMOR SEJAS ATENTA, pois ele é biodegradável, para garantir a renovação do teu interesse. Senão vira notícia velha. Só nesse sentido, quando olha para seus limites, o amor é egoísta, quer ter seu espaço devidamente demarcado, reconhecido e preservado. Se ele fosse um pedaço de terra, seria um acampamento do MST. Como é sentimento, inspira cuidados como passos leves e respiração curta. Devagar, como se estivesses atravessando o apartamento no meio da madrugada só de meias, e sem fôlego como se estivesses diante da Mona Lisa no Louvre. Não, não pode tirar foto. Exercite a posteridade interior.
NÃO SE ENTRETENHA, SE OCUPE. ABRACE a situação, não construa molde. A rotina e a previsibilidade não servem pra abrir trilhas, só funcionam em vidas pré-fabricadas. Partilhe seus segredos, mas não pare de usar camisinha.

QUANTO LHE DEVO? – 26/08/2006

Lembro de uma crônica do Luis Fernando Veríssimo chamada “Diálogo Norte-Sul” em que o Norte era um homem com trajes de executivo e mentalidade de gigolô, enquanto que o Sul era uma moça “pobre, porém honrada”, mas já de saco cheio da própria virtude, que não a deixava ter a mesma prosperidade de seu amigo Norte.
Ela pede um cigarro, ele dá e acende. E ela pergunta, cantando a melodia de “Guantanamera”: “Cuan-to-le-devo? – Pa-ri-pa-Cuan-to-le-devo?”. Claro que no final ela cede ao executivo-canalha e dá pra ele. Não é esse meu ponto. De tempos em tempos, o versinho do cuanto-le-devo toca na minha cabeça, porque será?
Tenho vontade de samplear o instrumental da Guantanamera e fazer uma letra bem ‘social e engajada’, tipo:
Quanto lhe devo?
Qual é a nota primeira?
Quanto lhe devo
Por essa vida inteira?
Eu tenho tudo que quero
E não consigo parar
Eu produzi homens livres
Para fazer salsicha em lata
Eu só me sinto seguro
Num pedestal numa praça
Já me chamaram de tudo
Eu sou o ouro e sou a cachaça
Quanto lhe devo?

Melhor deixar pra lá. Vai que agrada e depois tenho que manter o nível. Não teria como suprir a demanda.

“A VIDA É UM MAU GOSTO DA MATÉRIA” – CIORAN – 10/08/2006

I
Acho que devia essa reparação aos que não compreendem meu apego ao ateísmo. Passei os últimos minutos buscando argumentos para provar que Deus pode existir. Acredito que ele não exista, mas não tenho certeza disso. Não sei se pôr fim a essa dúvida é tão fundamental pra minha vida. Sei que ela não faz a mínima diferença pra quem acredita nele. Mas o fato é que passei incontáveis horas da minha vida tentando embasar esta minha crença perante aqueles que acreditam Nele. Ou nela. Talvez o verdadeiro foco da polemica seja qual é a conotação correta, ou mais cabível, do verbo “acreditar”.
II
Faça este teste: encharque um pincel com tinta (a cor ou cores fica a seu critério). Aí fique de pé de frente para uma parede branca e faça um movimento de saque de tênis usando o pincel como raquete. Serão lançados milhões de estilhaços de tinta contra o branco da parede. Agora largue o pincel e imagine (é, Imagine – it´s easy if you try) que você ficou dez vezes menor, e seu corpinho de dimensões reduzidas está flutuando onde antes ficava seu coração. Entendeu? Você é um bonequinho flutuando na altura onde antes estava seu peito.
III
Com um comando mental, aproxime-se da parede. Já que agora você mede 18cm de altura, está flutuando a poucos centímetros dela. Mas da sua atual perspectiva, parece 1 metro e meio de distância. Aproxime-se mais, até conseguir tocar a parede esticando o braço. Olhe ao redor (ou seja, para os lados e também pra cima e pra baixo, já que você está flutuando). A parede está tão salpicada de pontos desordenados de tinta que mais parece uma tela que um pintor jogou ao chão e sacudiu sua paleta de tintas sobre ela. É bizarro, desordenado e estimulante (lembra as telas de John Pollock).
IV
Já li em algum lugar: “Deus é como o espelho. O espelho nunca muda, mas todos que olham para ele enxergam algo diferente”. É fácil fazer disso um argumento a meu favor: a motivação que nos levou a criar Deus foi narcísica. Imagem e semelhança. Mas se somos todos iguais, porque Deus nos parece ter várias faces? E porque elas não podem conviver? Porque elas são, na verdade, nós! “Hezbollah” significa “Partido de Deus”, ou seja, “Partido de nós mesmos e nossa visão única”. Todos os envolvidos nessa chacina sem sentido lá no Oriente deveriam aplicar à política e à religião a mesma visão tolerante, porém criteriosa, que a Leila Diniz aplicava à sua vida sexual: “Eu dou pra todo mundo, mas não dou pra qualquer um”.

PADRÃO DAS PEDRAS – 02/06/2006

Renda-se ao padrão das pedras. Existe um padrão em todo movimento de desestruturação, principalmente naqueles que se realizam sem a ajuda humana. Renda-se aos ondulantes coloridos que impedem os neuróticos de caminhar sem pisar sobre o preto e o branco ao mesmo tempo. Seja cinza, não aceite uma regra sem antes verificar se foi você mesmo que a pôs ali. Porque ela provavelmente já estava ali, mesmo antes de ser obedecida. A pior parte da inevitabilidade é não saber de onde ela veio. A melhor também.
Sabedoria é a capacidade de enxergar duas receitas possíveis com o ingrediente filosofia: inquietação ou neurolinguística. Confúcio estava provavelmente certo quando disse que "o plantio é opcional, a colheita é obrigatória". Mas e se fosse ao contrário? O plantio é obrigatório, a colheita é opcional. Extremamente não-capitalista, não pragmático, não-vai-bater-a-meta! Dizem que tudo em excesso faz mal, então à luz dessa inversão eu pergunto: abnegação também?
Mas se ficar matutando demais tudo isso, não dou meia hora pra chegar a questionamentos importantíssimos tipo "como é que o Batman sempre acha um lugar aonde prender a batcorda?". E vai ser um artigo acadêmico completo, com informações extremamente relevantes como o fato da teia do Homem-Aranha ter uma resistência à tração de quarenta quilos por centímetro quadrado. Anotaram? Resumindo: trabalhe pra viver, mas não viva pra trabalhar, rapá!
E só pra esclarecer: Confúcio não estava errado. Ele também disse que "o sábio começa por fazer o que quer ensinar; depois ele ensina". Seja obsessivo na busca do seu sustento. Respeite o valor do trabalho braçal. E cuide da sua mente como se fosse um martelo de ferreiro, porque é exatamente isso que ela é; a ferradura é o mundo.

quarta-feira, março 15, 2006

ACHO QUE A VAIDADE SE SENTA EM IDIOTAS

E faz barulho de almofada de peido. E porque o Word sublinha a palavra peido? E porque o Word põe essa maiúscula assim, automaticamente, na palavra Word, depois que dou espaço? Digitei Bill Gates e aconteceu a mesma coisa, espaço e maiúscula automática. Não se deve confiar em Estadunidenses por causa de suas duas maiúsculas automáticas: nas palavras Eu e Deus, que eles grafam “I” (pronuncie “ai”) e “God” (Não pronuncie. Vai que ele responde!).
Voltando: idiotas são esmagados pelas nádegas da vaidade, cheias de varizes e crateras. São nojentas e admiráveis, como quase tudo que é célebre em nosso mundinho. Meu problema com isso é que eu não preciso de presentes, eu preciso de gestos. Quero muito aceitar o fato de que o principal dilema de Dom Quixote não seria por onde começar, mas sim porque começar. E o pior é que às vezes consigo aceitar. Mas tamanha humildade é como uma esponja encharcada, não segura a água. O ego vaza pelos poros e eu retomo minha resolução idealista como um general montado em seu cavalo na estátua que o homenageia.
E enquanto eu critico os idiotas por seu excesso de insegurança e ciúme, que pode ser resumido na palavra egoísmo, estou fugindo da minha responsabilidade de pegar o telefone e ligar pra quem merece explicações. Também sei peidar de salto alto.

MACHO DE VERDADE SE APOSENTA EM PELOTAS


Essa semana eu conheci uma moça de Bagé. Não é a primeira pessoa da região da Campanha que tive o prazer de conhecer, mas é a primeira com menos de 40 anos, o que me animou a direcionar a conversa pros hábitos arraigados daquela região, pra ver se havia algum choque de valores entre as gerações, algo que nós gaúchos não sabemos fazer muito bem. Nem como provocadores nem como provocados.
Não levou cinco minutos pra mencionarmos, não lembro se eu ou ela, a expressão “ponta de faca”. Gente séria, os gaúchos! Preservam o belicismo e a animosidade dos tempos do Castilhismo e cultivam cada vez mais um verniz de civilidade através da modernização (?) chamada “Tradicionalismo”. Ela falava com uma visão exterior a essa coisa toda. Acho que não havia conexão mais profunda com o que parece pra ela “uma coisa lá dos meus pais”. E ficamos nisso.
No dia seguinte ganhei dum amigo a Revista Aplauso nº 71, com o Renato Canini na capa. Esse cartunista gaúcho desenhou os gibis do Zé Carioca nos anos 70. Em parceria com o roteirista Ivan Saidenberg, Canini tirou o papagaio daquela roupa de malandro de 1920 (gravata borboleta e chapéu, onde estamos?), jogando-o de camiseta num barraco no morro. A Vila Xurupita, que parecia bairro de subúrbio, virou favela. E o humor ficou mais adulto, quase cafajeste, mas sem perder a boa índole fundamental. Ou seja, o Zé virou um legítimo Disney brasileiro.
E como essas duas coisas se relacionam? É que eu lembrei duma história clássica do Canini (não sei o quanto desse roteiro é dele) em que o Zé recebe um telegrama de seu primo gaúcho, o Zé Pampeiro, pedindo ajuda numa “peleja” (assim em castelhano, com J mesmo) contra outro grupo de peões. Ele vem ao RS, onde cospe chimarrão na cara dum peão (porque não sabia que estava quente) e se enrosca sozinho ao tentar lançar uma boleadeira. A certa altura, Zé Pampeiro explica que a peleja é por um campo de estância. O grupo que vencer fica com toda a área pra criar seu gado. Aí o Zé Carioca pergunta ao primo gaúcho porque os dois grupos não medem o campo e dividem ao meio. Zé Pampeiro responde perplexo: “Mas primo, aí não tem peleja!”.
Segundo a Aplauso, Saidenberg é carioca. Essa chinelada na índole campeira, pra mim, tinha que ser idéia do Canini, que continua não perdendo a piada: ele hoje mora em Pelotas e disse na entrevista que seu banheiro “é rosa, como todos na cidade”.

A JUSTIÇA INVENTADA PELO HOMEM ENXERGA MUITO BEM

“A existência é aleatória. Sem padrão a não ser o que imaginamos depois de contemplar tudo por muito tempo. Sem sentido a não ser o que escolhemos impor. O mundo desgovernado não é moldado por vastas forças metafísicas. Não é Deus quem mata as crianças. Não é o acaso que as trucida nem é o destino que as dá de comer os cães. Somos nós. Só nós.” - Walter Joseph Kovacs, 1985

Fatos não têm moral: eles simplesmente são. Quando são imbuídos de moral, passam a ser história. Se os aprovamos, chamamos de conquistas. Se os reprovamos, consideramos tragédias. Mas é preciso vivenciar para reconhecê-los de verdade e ser reconhecido por eles. Para ser lembrado pelo abismo quando ele te vir de novo. Ler, ouvir, testemunhar, ter qualquer contato menos profundo que a experiência é apenas entender cartesianamente. Não é apreender nem compreender.

JÁ QUE NINGUÉM ME PERGUNTOU MESMO....

Eu nunca odiei os Rolling Stones. Ódio é algo próximo demais do amor. Como sei que nunca amei os Stones, isso tira minha dúvida: ódio? Não, jamais.
Mas na ausência do ódio, sobra espaço pra o desprezo. Ouvi, já vão uns anos, alguns discos deles na integra. Sei que eram mais de cinco e menos de dez. Alguns dos anos 60, outros dos anos 80. Achei todos chatos. Aí fui ler as letras. Tá, tem alguns bons momentos (Sympathy For The Devil, Paint It Black, Satisfaction). Mas também tem uma enxurrada de metáforas sexuais simplórias e crônicas sobre o nada que estragam o quadro geral.
Quando vi um show deles em vídeo, piorou! Cinqüentões rebolando? Calças de couro? Lenços enrolados na cintura e na testa? Lembro dum superdemônio do mal nos gibis da Liga da Justiça que em certa ocasião descreveu os super-heróis como “drag queens da lei”. Os Stones reciclaram (mal) esse conceito no rock. São considerados provocadores nesse desbunde, mas provavelmente só estavam imitando, com menos espontaneidade, os New York Dolls. Falando em primórdios do punk, outra coisa: as caras e bocas do John Lydon têm alguma coisa de inspiradoras e irreverentes, e as caras e bocas do Mick Jagger são algo entre o patético e o risível.
John diz: “Ever got the feeling you´re being cheated?”. Mick retruca, mentindo: “I can´t get no Sati$faction”. Ambos ficam devendo uma nesguinha que seja de seus verdadeiros interiores. Mas pelo menos Lydon assume o que é. E nos avisa aos brados. Se mesmo assim queremos ser ovelhas, não é culpa dele.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO FUTEBOL CLUBE

Uma pessoa pode dizer “prometo só transar depois do casamento” e se manter fiel a esses dois absurdos, que são:
1. ignorar COMPLETAMENTE a própria libido, sendo que a obediência a esta deve ser balanceada;
2. ainda valorizar, em pleno 2006, a instituição MATRIMÔNIO, quando me parece que o correto seria amar alguém e, se quiserem, juntar os trapos. Casamento à moda antiga, me desculpem, é só uma desculpa pra poder se produzir e tirar fotos pra vitrine da vida. E eu odeio shoppings.
(Em tempo: essa lógica se aplica, a meu ver, a relacionamentos hetero e homossexuais).
Mas não se deve perder a capacidade de apreciar o valor de uma cantada – desculpem, um galanteio – decente.
Fui lembrado recentemente que existem mulheres que cercam seu tesão com um arame farpado que só pode ser cortado com um facão de inteligência. Um parente meu me colocou isso nestes termos: “São aquelas mulheres que dão pra ti por causa do teu olhar, não por causa dos teus glúteos ou bíceps. E são essas que acabam conseguindo fazer de nós maridos relativamente fiéis”. Quando olhei estranho pra ele por causa do advérbio, ele lembrou Einstein: tudo é relativo.
Enfim. Mulheres que gostam de cortejo. Há que saber respeitá-las e destrinchá-las. Se tu tens (e eu tenho) apreço pelo drama humano, sabes do que falo. Fazer a corte é dialogar tecendo teias. Entremear intenções de modo que sejam visíveis, mas não aparentes. Pra quem vê de fora, parece uma cena do Woody Alllen, - que faz teatro filmado. Mas os dois envolvidos, cortejador e cortejada, estão fazendo mais que isso. E porque não cortejadora e cortejado? Esqueça os gêneros, importante é a dinâmica da coisa.
Só não é legal pular com imenso ímpeto no papel de cortejar por não saber lidar com o bombardeio. Saber receber elogios de alguém específico é sintoma da nossa aceitação da imagem que aquela pessoa faz de nós. Uma imagem necessariamente mais realista do que nós podemos ver, caso a pessoa se preste a observar pelo tempo necessário, traçando nossas neuroses e como as solucionamos. Eu adoro saber que agradei alguém depois desse tempo, porque a criatura já percebeu que eu presido uma torcida organizada do TOC F. C. e continua gostando de mim.
“Quando estou com alguém, eu não traio. E se trair eu conto” – disse um amigo meu que considero extremamente sábio. Apesar disso, ou POR CAUSA disso, ele comete cagadas relativas a relacionamento na mesma freqüência e intensidade que qualquer um(a) de nós.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Aforismos bem legais do Luis Fernando Verissimo

Se você tivesse que identificar, em uma palavra, a razão pela qual a raça humana ainda não atingiu (e nunca atingirá) todo o seu potencial, essa palavra seria "reuniões”

As pessoas que querem compartilhar as visões religiosas delas com você quase nunca querem que você compartilhe as suas com elas

Ninguém liga se você não sabe dançar, levante e dance

Uma pessoa que é boa com você, mas grosseira com o garçom, não pode ser uma boa pessoa

Nunca tenha medo de tentar algo novo: lembre-se que um amador solitário construiu a Arca de Noé e um grande grupo de profissionais construiu o Titanic

E UM DO MACHADO DE ASSIS: “a morte é séria e nunca admite ironias”

Meu nome é Jesus Cê - Cê de cerveja

Desconstruído está o pedaço de um todo que fui eu. Alquebrado por alquimias novas que não se pode evitar, explicar ou odiar. Alvos sem massa. Balas de borracha. Estou de volta pro meu descarrego, trazendo na alma bastante verdade. Salva-me da certeza, fiadaputa. Senhor é a mãe!
Eu só acreditaria num Deus antropomórfico que soubesse peidar e arrotar. E fosse alérgico à própria autoridade: “Meu, levanta, esse negócio de ajoelhar é coisa do cerimonial, é arcaico pra cacete. Assim, ó: não age como guri de 14 anos conhecendo o pai da namorada que eu não te mato por usar camisinha, falou?”.
Eu ia adorar. “Cara, esquece o Jeová, pode me chamar de Jota Cê. Tô podrão, ainda trabalho nos santíssimos três turnos. Aliás, tem ceva aí?”

INSPIRADO - escrito em dezembro de 2001

Do dicionário Aurélio:
INSPIRADO - Que procede sob o influxo de uma inspiração mística ou poética
MÍSTICA - O estudo das coisas divinas ou espirituais. Sentimento arraigado de devotamento a uma idéia ou causa
POÉTICA - Arte de fazer versos
Talento é uma coisa que se trabalha e se aperfeiçoa, e o gênio é o resultado desse trabalho. Não sou gênio. Tenho talento, e estou aprendendo a construí-lo. Nem sempre acredito em inspiração. Acho que ela é só o combustível do talento.
No caso do meu trabalho, das minhas letras e melodias, parto das minhas insatisfações e dificuldades de compreensão (e aceitação) do mundo e do ser humano. Porque, como diz o filósofo Alfred Pennyworth, “apesar de existirmos no mundo como indivíduos, a raça humana é, espiritualmente, uma entidade única”. Não acredito que alguém fique indiferente ao sofrimento humano. Pode até ignorá-lo, mas isso também demanda uma decisão consciente. Todos são tocáveis e todos acabam tocados mais cedo ou mais tarde.
Aviões colidem com o WTC. Crianças catam lixo nas ruas de Porto Alegre. A vitória do ter sobre o ser. Todas essas coisas me tocam, me motivam - me alimentam e me sugam ao mesmo tempo. E se transformam em crônicas. Mas minhas crônicas têm rimas e métrica. Ser um cronista me impede de transcender meu tempo, meu mundo, minha incompletude, e isso não é necessariamente ruim.
Porque minha inspiração é um desejo de me melhorar através da música. É a isso que sou devotado. É o que há de espiritual em mim, essa sensação instintiva (pois não sei explicá-la) de que estou ligado a todas as pessoas que vivem hoje na Terra e que todos buscamos nosso bem-estar assim como o dos outros. Antes de deixar um legado, é melhor criar uma dúvida: estamos criando, com nossos atos, condições para que o maior número possível de irmãos se realize? Porque somos todos irmãos, do varredor de rua ao dono de banco. É inspirador abrir as fraquezas e convidar os outros a se identificarem com elas ou não.

terça-feira, janeiro 10, 2006

PARALELOS QUE SE CRUZAM

O texto abaixo é de março de 2005. São trechos de um e-mail que mandei pra uma amiga. Ponho aqui como curiosidade.

Estou em busca de um apartamento. Para comprar. Desde novembro passado, já olhei uns 70 imóveis. É foda achar o que quero dentro do que posso pagar. Dois quartos. Prédio antigo com condomínio baixo. Sem elevador nem garagem. Menino Deus, Santana ou Bom Fim. Chega de Duque de Caxias e de gente bem-intencionada, mas entrando sem bater. Quero ter meus próprios vizinhos, quero lavar minha própria louça!
Estou em um relacionamento. Não é namoro nem virá a ser. Ela gostaria que fosse, e se ressente por isso. Eu faço outras coisas, que chamo de impulsos, que ela chamaria de traição. Malditos seres humanos e suas necessidades que não podemos suprir – e não estou dizendo isso me dirigindo a ninguém específico. É só um desejo que tenho, um desejo frustrado, de não magoar ninguém nunca.
Eu tenho milhares de planos, mas sabe como é: só consigo fazer o que QUERO, não o que PRECISO. Mas sei o que fazer pra melhorar: dar tempo ao tempo, que minha força aparece (espero).

TRÊS PARÁGRAFOS FICCIONAIS E TRÊS NÃO-FICCIONAIS

1. Era uma vez Sujeito, um ser de aparência desgastada e espírito magro e inseguro. Ele tinha o mesmo poder especial de seus antepassados: uma fraqueza interna que contrabalançava com sua força exterior. Desse equilíbrio ele criava uma energia única, que abria grandes e pequenos espaços na vida que levava. Essa energia, seu poder, era o EU. Essa força, ele não podia ver ou compreender inteiramente, mas ela estava totalmente sob seu controle, e ele assim cumpriu o destino que fora pavimentado para ele: sofreu. Logo em seguida, fugiu. Esse ciclo se repetiu por mais tempo do que nos é permitido lembrar.
2. Como não era um completo idiota, Sujeito aprendeu com isso e transformou as fugas em suas escravas, ao invés de se deixar escravizar por elas. Por causa disso, demonstra seu orgulho ostentando um grande S de Sujeito no peito. Ele busca hoje ser não apenas o dono, mas o senhorio de si mesmo: um responsável técnico, por assim dizer, do corpo, alma e mente que o destino lhe deu. Essa busca consome sua energia motriz e o faz suar. O EU expele todo tipo de microorganismos através da pele, exceto os paranóicos, que não são arrastados pela corrente sudorípara porque não têm massa. Eles se acumulam no interior de Sujeito e formam grandes úlceras.
3. De tempos em tempos, as úlceras são expelidas. Sempre em momentos de grande emoção, que podem ser frustração ou êxtase, as duas voltagens nas quais a energia do EU se propaga pelo éter físico. Esses momentos são, na verdade, o domínio das fugas por parte de Sujeito. Ilusões ególatras e psicotrópicos funcionam como meios de condução dessas energias, que sempre atingem as pessoas ao redor do EU. Assim é a luta do herói Sujeito para alcançar um grande bem, que representará a redenção da raça humana: a identidade!
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1. Se sou vilão, quero ser lembrado como Darth Vader. Quero me redimir no final do nosso roteiro. Largando as armas e tirando a armadura. Olha, eu queria saber se fiquei mesmo com o papel do vilão. Se vou ser lembrado assim, com um misto de raiva e piedade. Eu meti os pés pelas mãos. Havia algo importante a ser feito, e eu tenho essa sensação de que não fiz o que poderia. Que precisava atingir um padrão impossível, mas talvez alcançável, se eu me esforçasse de verdade. Cumpri meu dever, mas não abracei nenhuma causa nobre. Também não segui meus instintos, e acredito que deveria tê-los seguido.
2. Acredito tanto nisso que chego a suar só de escrever estas linhas. Pode ser o verão. Mas provavelmente é meu ego. Estou tentando pedir desculpas, mas dói. Na alma, dói desde a última vez que te vi, e nos tendões das mãos, dói agora que já passei de cinco linhas. Não consigo mais digitar sem dor. A tendinite finalmente vai se instalar, e eu vou poder mentir de novo e dizer que “é de tanto tocar violão”.
3. Também não quero fazer isso sem saber se estou me desculpando pelos motivos certos. Tem mais uma coisa. Não quero consertar nada sozinho. Quero me transformar em algo merecedor de perdão em vez de ficar falando e falando até te convencer que ainda sou um Jedi.

UM FIM DE ANO MAIS SINCERO

O clima de fim de ano traz muitos hábitos artificiais típicos da época, sempre devidamente estimulados pelos setores descolados da mídia sisuda. O mais esquisito deles me parece a lista de resoluções de ano novo.
Na verdade não é tão esquisito assim: vivemos de acordo com ciclos fictícios, divididos em milênios e séculos, cuja partícula mais infinitesimal é a hora trabalhada (ah, o ritmo do relógio de ponto). Logo, nada mais natural que o fim de um desses ciclos arbitrários nos provocar um sentimento de renovação. E como diria uma professora de teoria jornalística, sentimento é necessariamente pauta!
Então resolvi assumir uma única resolução de ano novo: vou me esforçar em 2006 para perder de vez meu preconceito contra pessoas ricas. Sincero, não? O maravilhoso e transcendental momento do fim de ano gera em mim esta vontade de aceitar, mais e melhor, as pessoas que, por inúmeras razões, inclusive por acaso, fazem parte da elite econômica.
Sucesso e riqueza são coisas das quais se orgulhar, são desejáveis e, mais importante ainda, são aceitáveis para os padrões da sociedadezícula que criamos (“Em sociedade tudo se sabe” – Ibrahim Sued). Parece estranho que aqueles que realizam esses objetivos sejam alvo de preconceito. Mas já que dinheiro é algo que falta demais na vida de tanta gente, não devia sobrar demais na vida de ninguém.

“Ganhe tudo o que puder, poupe tudo o que puder, dê tudo o que puder.” - John Wesley (1703-1791), teólogo metodista inglês

DORIANA E COLGATE

Hoje fui confrontado com dois arautos incontestáveis da falta de dinheiro. O pote de margarina e o tubo de pasta de dente jogaram-me na cara seus pedidos de aposentadoria: “Por favor, envie-nos para o asilo do lixo seco”. Ao mesmo tempo, me permitiram dar vazão ao meu lado sádico, já que foi preciso raspar e apertar, e fazê-lo com dois instrumentos que poderiam muito bem ser usados em verdadeiras sessões de tortura: uma faca e uma escova de dentes.Raspei e apertei para não comer pão puro e não dormir com tártaro (embora eu esteja nele, se carregarmos nas tintas do melodrama ao descrever o meu atual contexto fiscal). Eu podia colocar aqui referências internéticas a técnicas de tortura com lâminas serrilhadas ou diferentes interpretações do conceito de tártaro. Ou ainda descrever minhas idéias sobre como causar dor a um ser humano com uma escova de dente. Poupá-los-ei.Vou me restringir a comentar essa percepção, concentrada e portanto aparentemente nova, que tive do poético que há na alimentação e na higiene pessoal cotidianas, esses rituais universais que nos lembram, assim como nos fazem esquecer, por sua inserção na rotina, o prazer de valorizar as pequenas coisas domésticas, que ocupam um espaço ínfimo no orçamento, mas fazem uma falta imensa quando acabam. Só isso.Mas fiquem tranqüilos, a situação não é tão terrível: no dia seguinte, havia fundos para adquirir outra Doriana e outra Colgate Tripla Ação! Estou bem alimentado e sem medo de sorrir!

quarta-feira, dezembro 28, 2005

DISCIPLINA É LIBERDADE ou MERGULHAR FUNDO

Nunca vi um poço artesiano. Eu acho. Nunca caí num poço, disso tenho certeza. Mas sei exatamente qual é a sensação. Com uma certeza daquelas que não deprime. Esmaga. Pensei nisso porque recentemente aconteceram coisas boas que não se realizaram, e podem nunca se realizar. Isso anula sua bonança. Dias perfeitos que só foram imaginados. A imaginação, por sinal, é o lugar onde um dia mais facilmente pode exercer a petulância de ser perfeito.
“Disciplina é liberdade. Compaixão é fortaleza. Ter bondade é ter coragem”. Tudo isso é um excelente preâmbulo, com seus aparentes paradoxos (Budistas? Taoístas? Preciso ler mais sobre ambos...), mas o mais importante está logo depois: “Ela disse: - lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa”. Tão limpa que chega a atrair. Convidativo como uma piscina. Um poço entupido de cadáveres afogados porque todos querem se purificar no cristalino de suas águas. Fora da letra da música, a pessoa que me inspirou este texto não disse isso literalmente, mas bateu na tecla desse significado várias vezes com outras palavras, que eram também cristalinas.
E eu não quis me afogar. Quis, mas não o suficiente.
Claro que eu sei que o original é uma metáfora. O poço brota da terra, mas o consideramos limpo demais porque não somos merecedores de tamanha dádiva. Aquele presente que surge do ventre de Gaia (poderíamos chamar esse ventre de “encontro casual numa noite qualquer”) não pode ser tocado por nossa podridão humana e mundana (ou não podemos mergulhar profundamente nele porque sobra covardia).
Gaia não esquece de seus filhos. Apesar da recíproca não ser verdadeira. Sempre que o maravilhoso se manifesta no casual, ele o faz com toda a força que tem, tal que nos assusta tanto que fugimos. Contrariados. Mas partimos porque não suportamos mais que alguns minutos junto dele, mergulhados. Nos julgamos não merecedores, subimos ofegantes à superfície da rotina e não olhamos mais para aquele brilho cristalino hipnotizante. Mas não, estou mentindo. Às vezes olhamos de novo.

UM LAÇO DE CORDA E UMA CADEIRA DE 3 PERNAS

Eu queria ter sido pego de surpresa pelo email me convidando pra uma festa-surpresa de aniversário do meu amigo Marco, organizada pela namorada dele, a Luísa. Mas outra amiga já tinha me dito que haveria a festa, acabando com minha surpresa diante dessa manifestação tão pura de fraternidade, e em ultima instância, amor.
Fica bem mais fácil descrever os sentimentos quando se tem um exemplo prático deles. Graças à atitude da Luisa, ficou claro: ser amado é ter alguém em nossa vida que nos organiza festas-surpresa.
Isso se trata de algo muito simples e muito indispensável na vida de todo mundo, e que está faltando na minha, não porque não tenha quem me ame, mas pela circunstância fiscal que atravesso. Ter pouco dinheiro (maldito seja ele e toda sua descendência) dá uma sensação de enforcamento. Mas um enforcamento não inteiramente consumado, o alivio da morte nunca chega: fica-se com a corda no pescoço e um pé apoiado numa cadeira que tem uma perna quebrada. O que fazer? Tentando esticar a perna pra diminuir a pressão da corda na garganta, quase derrubei a cadeira; tentei segurar a corda com as duas mãos e me pendurar, mas senti que a cadeira novamente ameaçava cair. E mesmo que não caísse, o que eu faria depois de pegar a corda?
Eis que surgiu essa atitude da Luisa (Obrigado!) pra me lembrar dos porquês da vida. Não se procura sentido, se cria um. Viver é ter a chance de contribuir. Ou como já disse o ateu Bruce Wayne: “A vida não tem sentido a não ser pelo que trazemos a ela”. E ela retribui trazendo a nós a mesma coisa, senhor Wayne. Não tenho certeza se foi Paul McCartney quem disse “The love that you take is equal to the love that you make”.
Que bom que tenho amigos pra me lembrar que a vida não é só sobrevivência. Nunca é.